domingo, 21 de maio de 2023

ENTREVISTA: Valéria Pinheiro e a celebração da ancestralidade feminina através da dança

Coreógrafa cearense deu entrevista ao DIVIRTA-CE falando sobre a carreira e seu novo espetáculo "Touro Bull"
Valéria Pinheiro é uma das mais destacadas coreógrafas e dançarinas do cenário cultural cearense. Sua trajetória é marcada por uma forte influência da cultura caririense, que ganhou ainda mais destaque em seu mais recente espetáculo, intitulado "Touro 'Bull'".
Em entrevista ao DIVIRTA-CE, Valéria compartilhou um pouco sobre o processo de criação do espetáculo, que tem como objetivo abordar de forma cênica a ancestralidade feminina a partir da perspectiva da cultura caririense. "A partir das minhas memórias, nasci e me criei em Juazeiro do Norte, reconstruí alguns dos arquétipos do imaginário nordestino em formato de uma sinfonia de sapateado, sapateios identitários brasileiros, trazendo os brinquedos e folguedos do Cariri que têm passos ritmados e batidas de pé", explicou a diretora.
Valéria também falou sobre a importância da cultura e do teatro para a sociedade: "O teatro sempre foi uma forma de escapar da realidade, mesmo em tempos de pandemia. É nossa responsabilidade enquanto artistas proporcionar esse momento de escape para o público. Além disso, o teatro também é uma forma de trazer reflexões importantes para a sociedade, de abrir portas e discutir temas relevantes". Com mais de 20 anos de carreira, Valéria Pinheiro é reconhecida no cenário cultural cearense por suas criações artísticas que dialogam com a cultura regional e a ancestralidade afrobrasileira. "Touro 'Bull'" é mais um exemplo da sua contribuição para a valorização e celebração da cultura caririense através da dança.

DIVIRTA-CE -  Quando começou seu interesse pela dança? Como foi seu início profissionalmente na carreira artística? Quais as maiores dificuldades da época? Quem são suas referências na dança?
VALÉRIA PINHEIRO - Eu na verdade me apaixonei pela dança quando estava terminando engenharia civil, ou seja, eu já era uma menina mulher de vinte anos. Terminei engenharia civil com vinte e um. Com vinte anos eu fiquei completamente apaixonada pela dança, porque eu vinha da patinação artística. Morava em Manaus, e em 1979 meus pais voltaram pra Fortaleza com a família inteira. Eu cheguei em Fortaleza perdida. Achei uma escola chamada ‘Sati Dance’ que tinha como dirigente Ticiana Fiuza e Sara Filomeno, e eu fiquei completamente apaixonada. Eu entrei na escola e fui abduzida pela dança, porque eu entendi que era aquilo que eu queria fazer. Então eu cheguei em casa, quase terminando engenharia civil, e olhei pra família e disse ‘gente, eu estou absolutamente apaixonada eu quero fazer isso’. Meu pai brincava e dizia ‘olha entra no momento que tu tiver tempo livre da faculdade’. Quando eu entrei naquela escola alguma coisa mexeu muito forte comigo. Porque eu senti que era sobre isso, era sobre esse corpo que eu queria estudar. Era sobre tudo que envolvia esse corpo e transversalizava de dança que me interessava naquele instante. E aí em 1980, quando eu termino engenharia civil, eu olho pra minha família e digo ‘olha está aqui o diploma, mas eu vou pro Rio de Janeiro, eu quero aprender uma técnica que se faz lá muito presente que era a dança contemporânea e que eu tava completamente apaixonada’. O meu pai tinha acabado de conseguir um emprego pra mim na Del Rio, uma empresa. Eu disse que ia fazer mestrado. Entrei na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) e vi que estava aberto a inscrição para análise de sistema. Os computadores nessa época estavam começando a aparecer. Eu fazia PUC de noite e de manhã eu cursava a Cal (Curso de Artes Laranjeiras), Tablado. Entrei pra um espaço chamado CAT que é Centro de Artes do Tempo, onde eu fazia aula de jazz, de balé clássico, de teatro, de sapateado, de tudo que você possa imaginar. E foi assim que eu comecei a pensar minha vida profissional. Começa aí minha grande jornada na dança, porque minhas referências era a ‘Bandança’ uma companhia de dança que já trabalhava com música ao vivo, que tinha na direção os Nardines, como eram chamados. Dentro da companhia trabalhava com a família Nardini, Tânia, Tony, Nádia, uma galera muito fértil que vinha trabalhando naquela época, trabalhavam com Elis Regina, Marli Tavares, Lennie Dale que eram minhas referências na dança e meus ídolos também. Porque eu queria na verdade ser uma bailarina como eles. Então, minhas referências na dança são eles. Eu sou contemporânea de Deborah Colker, por exemplo. 

DIVIRTA-CE - Você está em temporada com seu novo espetáculo, "Touro Bull". Como foi a repercussão, e qual a proposta de concepção desta peça?
VALÉRIA PINHEIRO - Sim, eu estou na temporada de Touro que está linda. A gente fez vários espetáculos no Cariri, conseguimos chegar em em Sousa, na Paraíba e foi mágico. Touro é um espetáculo que fala sobre esse universo feminino de uma força muito forte, universo esse que eu mergulho de cabeça em 2018 quando eu venho embora de Fortaleza e chego no sertão. Chegando no sertão foi bem difícil pra mim, porque eu fecho o Teatro das Marias, meio que deixo ali de lado a Companhia Vatá e preciso chegar no sertão pra me restabelecer, pra me refazer. Porque eu tive que fechar o Teatro das Manias por falta financeira mesmo. Eu havia perdido pai, perdido a mãe, que eram meus patrocinadores durante quase vinte anos com o Teatro das Marias em Fortaleza, onde eu tinha a sede da companhia. Enfim, uma mudança muito radical na política de uma forma geral, onde os elementos que tínhamos como políticas públicas foi absolutamente minguada a partir de 2018. A gente teve um desgoverno começando e foi bem complexo pra nós sem política pública, sem possibilidade nenhuma. Coloco o meu teatro num caminhão e chego na nas terras que eu herdei do meu pai, na zona rural de uma cidadezinha chamada Jati. Então esse primeiro ano foi um ano de muita observância, de muita quase resiliência mesmo. Foi olhando essas mulheres fortes do sertão que eu entendi que eu poderia me reerguer. Então nasce a minha forma de olhar o sertão de uma outra forma. Eu passei a olhar o sertão de uma forma pop eu diria, eu começo a me apaixonar muito fortemente pela cultura pop e a cultura de mulheres. Eu começo a olhar pra Lady Gaga, começo a olhar pra Madonna, para a própria Anitta, para mulheres que eu entendo como um uma fortaleza muito grande de visão de lugares e de olhando o mundo esse feminino, colocando o feminino como protagonista. E aí de repente eu me vejo no sertão vendo essas mulheres como protagonista. Porque isso é Touro, Touro é exatamente o meu olhar sobre essas mulheres e sobre essa força feminina que que na minha concepção é um touro. Touro porque touro tem aquela força que parece uma força masculina, mas, trazendo pro sincretismo e trazendo pro candomblé touro é o nascimento de Iansã que é uma das divindades mais fortes que a gente tem no nos orixás, enfim, mas isso é uma outra história. Então, nasce Touro na minha cabeça, a vontade de falar sobre esse feminino, a vontade de entender esse feminino. Porque esse feminino sou eu também. Eu sou filha desse sertão. Então toda a minha tristeza dá lugar a uma reconstrução de mim mesma. Eu passo por uma cirurgia difícil de prótese total de bacia, onde eu tenho que reaprender a andar, reaprender a quase existir, onde o meu medo de não dançar quase me engessa. Então, tudo que eu vejo no sertão me é impulso. Me é impulso olhar mulheres entre 50 a 90 anos de idade com um balde de água na cabeça andando quilômetros pra buscar, colocando o menino pra escola, menino pra cá, menino pra lá, cozinha, vai pra roça, volta no final do dia veste sua chita mais bonita, põe o seu batom vermelho e vai pro samba produzir alegria. É sobre esse feminino que eu me debrucei. E tive a alegria de ter comigo o Marcelo Paes de Carvalho que é um cara genial que chega pra mim e diz ‘Ok, Val, eu vou passar a filmar tudo que tu olhas no sertão’. É um cara que já está comigo há quase 20 anos e que tem viajado o mundo comigo e começa a me mostrar o meu próprio olhar sobre esse sertão. Porque de vez em quando eu ia pra roça me encontrar com mulheres e brincava de dançar, ele começa a me ver desse lugar e foi através desses pequenos vídeos que eu acho que nasce a minha vontade enorme de começar a dialogar com isso como argumento. A partir disso, eu convido Rodrigo Frota, que é um grande diretor de arte e digo, ‘Rodrigo, eu quero dialogar com uma carroça de boi, como é isso?’. E aí ele começa entrevistas comigo muito forte me acompanhando muito fortemente junto com Vinícius de Oliveira Oliveira que é o diretor da peça e entendendo a minha ancestralidade, a minha pessoa, essa mulher de quase sessenta e quatro anos. Ele cria carroça com elementos e signos geniais e a gente começa a levantar a obra e em outubro de 2022 nasce Touro ‘Bull’.

DIVIRTA-CE - Você foi dona do Teatro das Marias em Fortaleza. Como foi essa época? Quais os grandes momentos, memoráveis e do que você sente saudade?
VALÉRIA PINHEIRO - Falar do Teatro das Marias é uma das dores e alegrias maiores da minha vida. Eu vim embora do Rio de Janeiro em 2000. Eu cheguei no Rio em 1980 e fiquei até 2000. São vinte anos de Rio de Janeiro, vinte anos de muita produção, de muita construção, de muito tudo. Em 2000 eu resolvo voltar pra Fortaleza porque eu queria ficar mais perto, em especial do meu pai, que havia adoecido. Ele é um grande ídolo. E chegando em Fortaleza a coisa que eu mais sentia falta era da minha companhia de dança, que nasceu em 1994 lá no Rio de Janeiro. Era muito incentivada pelo meu pai e pelo Flávio Sampaio, que é quem me acolheu muito fortemente neste momento em Fortaleza. De imediato ele me chama pra ir ser uma das professoras da escola que acontecia no José de Alencar. Disse qu eu topava, desde que eu entre como aluna também. Era importante pra mim estar nesse lugar de produção de conhecimento porque era muito difícil não estar no Rio de Janeiro. Em meados do ano 2000 eu abro a minha companhia de dança. Meu primeiro espetáculo chamado ‘Bagaceira A Dança dos Mestres’ uma homenagem que eu faço ao meu pai e um mergulho muito forte no fazer e no saber dos mestres que tanto me inspiraram esse tempo no Rio de Janeiro. Em maio quando diante de tanta dificuldade, de onde ensaiar, não tinha mais como ensaiar meu pai diz que vai passar o apartamento do Rio de Janeiro para o meu nome. Fui pro Rio, vendi meu apartamento até bem mal vendido, e fui atrás de montar meu teatro ao lado do Centro Dragão do Mar. Eu cheguei do Rio encantada com o Dragão do Mar, achava que tudo que tivesse ali ao redor seria o off broadway, buscando uma memória lá atrás quando eu morava em Nova Iorque. E achei ali na Senador Almiro 223, um espaço. Então foram dezoito anos de muita luta, mas dezoito anos de muita produção de conhecimento. Nasceu no Teatro das Marias, projetos como O Tambor de Crioula, que hoje é um dos elementos mais fortes que a gente tem em Fortaleza, a Caravana Cultural, nasce lá, o movimento de blues. A gente lança um dos caras pra mim mais importantes da música cearense, que nesse instante está em Chicago, que é o Arturzinho Menezes. Ele nasce no Teatro das Maria, é lançado ali. A gente tem não só a ‘Companhia Vatá’, como outras companhias que nascetlram ali, companhias essas que hoje se tem no mercado no Rio de Janeiro como ‘Companhia dos Países Grandes’ que hoje está completando quase dezesseis anos de existência. A gente tem o circo, muito fortemente nas Marias que hoje a gente tem alguns espaços circenses do circo contemporâneo erguidos em Fortaleza e que durante anos fomos nós quem trabalhamos não só na fruição como também na formação em circo. O Teatro das Marias foi protagonista em muita coisa, a gente começa com as residências artísticas, trazendo pra dentro do teatro o Silvero Pereira que traz todo o movimento trans pra dentro. Nós temos uma forma de inclusão muito forte dentro do movimento LGBTQIA+. Eu tenho muita saudade do Teatro das Marias. Foi um lugar que me ensinou sobre produção, eu trouxe para um lugar tudo que eu aprendi desde os 17 anos trabalhando com a Xuxa, Jonas Bloch, e produzindo Guilherme Fontes, Cláudio Abreu e trabalhando com gente tão bacana no Rio de Janeiro, mas o Teatro das Marias foi a minha grande universidade. Porque eu precisava o tempo inteiro pensar o teatro como um espaço de formação como um espaço de fruição e nunca esquecer que éramos um teatro underground. 

DIVIRTA-CE - Hoje radicada no Juazeiro do Norte, você desenvolve diversos trabalhos como dançarina, coreógrafa, produtora. Como anda a Cultura no Cariri? Quais os projetos da Valéria Pinheiro atualmente?
VALÉRIA PINHEIRO - Voltei a minha casa que é o Juazeiro do Norte, que é o Cariri, a região que eu entendo como sendo o maior celeiro cultural do mundo. Voltar para o Cariri é trazer de volta em mim essa Fortaleza que tanto me construiu e me levou para o mundo. Porque minha obra está vestida de Cariri, Foi o Cariri que me levou para a África, foi o Cariri que me levou pra Tóquio, me levou pra Europa, Canadá e tantos quantos países que nós conseguimos ir dançar, nós da Companhia VATÁ. O Cariri é de fato fazer uma ponte geográfica bem pequena entre a tradição e a contemporaneidade e acreditar se a gente monta aqui uma construção de um pensamento em produção de conhecimento a gente pode ter ainda mais forte a juventude daqui. Entendendo que não preciso sair daqui para os grandes centros, eu tenho aqui a maior universidade das artes, sejam elas transversalizada de artes cênicas ou artes visuais, ou artes da música. Spoiler 2024: eu vou viver Raquel de Queiroz nesse corpo de quase 64 anos, mas absolutamente brincante e jovem. Mas isso é uma outra história.

DIVIRTA-CE - Sentiu alívio com o retorno do Ministério da Cultura? Qual sua maior crítica em relação a incentivos tanto privados quanto públicos para a arte brasileira?
VALÉRIA PINHEIRO - Desde a entrada do Temer lá atrás, mesmo no último mandato da Dilma antes do golpe, vamos dizer assim, a gente teve um desmonte grande de políticas importantíssimas. Políticas públicas importantíssimas provindas do ministério pra nós. E aí na entrada do Temer a coisa desandou mais ainda e com a entrada do Bolsonaro a gente simplesmente extinguiu o Ministério da Cultura. Extinguindo o Minc, com ele, quase 100% das políticas públicas importantíssimas para o movimento cultural do país foram extintas. Você viu por água abaixo o Iphan, Funarte e outros equipamentos, como as próprias políticas. É óbvio que agora a gente está vestido de esperança vinda do Ministério da Cultura e a forma como este atual governo está lidando com todo aquele desmonte. Já mostra uma seriedade muito grande, ele fez sentar as cadeiras principais da cultura e dos movimentos, pessoas absolutamente compromissadas com isso. Então sim, eu acredito que a volta das instituições e a volta da cultura de uma forma geral tanto no campo das artes quanto no campo dos patrimônios material e material vão ser absolutamente relevantes. Eu acredito que nesses próximos quatro anos ainda não vamos conseguir construir toda a destruição daqueles últimos dez anos. Mas a gente está num caminho muito bacana e acredito que a volta do Ministério da Cultura com a seriedade daqueles que estão sentados à mesa e pensando a reconstrução muito vai nos ajudar na ponta de cá. Com relação as empresas privadas, elas se apoderaram do não compromisso cultural e se afastaram, o que é mais grave ainda. As principais empresas públicas do país foram extintas, foram extintas porque a gente não tinha mais o Ministério, ficamos acéfalos e nada mais funcionou. Então, eu acredito que agora com as mãos daqueles que tem compromisso de reconstrução, a gente vai inclusive ter uma mudança muito radical na construção do pensar das empresas públicas e privadas com relação a cultura. Colocando a cultura na grade principal do país, entendendo a cultura e a produção de conhecimento provinda da cultura, não só no âmbito da produção de conhecimento, mas na produção de economia também. Somos o segmento do país que muito gera economia. Desde a economia criativa até a economia que circula nos principais eixos desse país, muita coisa provém da cultura. Então sim, eu acredito que a gente vai ter mudança.

DIVIRTA-CE - Valéria, do que você sente mais orgulho de ter realizado? Qual seu maior sonho?
VALÉRIA PINHEIRO - Eu não falei sobre o meu sonho. Eu sou uma mulher que tem 64 anos e que tenho sonhos. São os sonhos que me impulsionam. Nesse instante meu maior sonho é lançar um teatro de taipa, onde possa conversar com as principais universidades de artes do mundo. Estou nesse instante em contato com a Paris 8 na França. É a Paris 8 que eu quero trazer para o sertão e eu quero levar o sertão pra Paris 8. Porque eu acho que a construção de pensamento entre o que eu aprendi com a Paris 8 na França e o que eu aprendo com a mestra Maria de Tiê no meio da Chapada do Araripe são conhecimentos que precisam ser trocados e é esse é um sonho um diálogo entre o sertão e a França.

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