quinta-feira, 17 de março de 2022

ENTREVISTA

40 ANOS DE MUITA MOLECAGEM
Carri Costa celebra 40 anos de carreira em 2022 e faz apresentação especial nesta quinta no Theatro José de Alencar, da peça "Tita e Nic"
Um dos maiores atores e diretores de teatro na nossa geração no Ceará, o espetacular Carri Costa, está comemorando em 2022 seus 40 anos de carreira. Ele apresentou quinta em Fortaleza, no Theatro José de Alencar, nesta quinta às 19h30, os 24 anos da peça "Tita e Nic", com sua Companhia Cearense de Molecagem, em sessão gratuita que está com ingressos esgotados, e se prepara para gravar duas temporadas de "Cine Hollyúdi", da TV Globo. Em entrevista para O DIVIRTA-CE, o cearense conta toda a sua carreira, os filmes que irá lançar, uma nova série da Netflix, e fala da reabertura do Teatro da Praia que acaba de receber um incentivo de 250 mil reais do Governo do Estado para reabrir na Avenida Monsenhor Tabosa. Confiram.
DIVIRTA-CE - Quais as reflexões que você faz desses 40 anos de arte? Como surgiu o interesse e como foi o início da carreira de ator?
CARRI COSTA - Antes de fazer toda essa comemoração, eu estava refletindo sobre porque os artistas celebram 40 anos de carreira. O médico não faz isso, o engenheiro também não, mas o artista faz. Que diferenças são essas? Nós vamos para a história da cultura no nosso estado, e percebemos que o grau de dificuldade que um ator, uma atriz, de qualquer pessoa relacionada com as artes cênicas e outras linguagens artísticas. Como é difícil sobreviver e fazer a opção clara de permanecer no Ceará, exercitando, fazendo, produzindo a arte e a cultura. Eu comecei como todos os artistas, morando numa região periférica, sem muita formação e informação, numa década de 80 do século passado. O local onde eu estava era complicado e de onde eu vim era mais complicado ainda. Optar por algo que você não teve muita referência, é sinal que alguma coisa está latente, é real dentro de você. Não é uma dúvida ou fantasia. O teatro, as artes cênicas, sempre foram muito reais para mim. Por isso eu acho terrível quando você subestima ou quando você não acredita na pessoa que está começando a fazer teatro, quando você é um amador. Acho essa palavra linda, e muitas vezes gera muito preconceito. Eu não fui diferente dos artistas comuns. Eu aprendi na prática, fazendo. Quando não tinha espaço, eu corria atrás para o espaço acontecer, para viabilizar aquilo que eu achava interessante. E logo no começo, quando eu fazia teatro de bairro, eu aprendi tudo. Mesmo não tendo acesso a literaturas, oficinas, cursos, o exercício artesanal e intuitivo do fazer teatral era uma coisa que emanava de dentro para fora de forma concreta, forte, e isso vai se desenvolvendo. Você vai vivendo um dia após o outro com esse ideal, esse pensamento. Eu sempre tive uma relação muito explícita com a humanidade, com aquilo que nos torna humanos. A minha relação com o popular, com os direitos humanos e com a parte mais sensível, provém disso, de uma época de abertura, vem dessa juventude militante que fiz parte. Do movimento religioso, católico, onde abrimos discussões para entendimentos, onde produzíamos ações culturais ligadas a Pastoral da Juventude, Teologia da Libertação, movimentos que tinham uma consciência popular e compatível com a época da abertura política também. Isso me fez ter a clareza e optar por caminhar por essa trilha. Com o tempo fui me aperfeiçoando com a literatura teatral. Me deparei com o curso de artes dramáticas da Universidade Federal do Ceará e ali eu entendi o que eu queria e o que eu não queria. Muitas vezes o universo acadêmico impõe uma determinada boçalidade que é estranho para quem está no meio das artes. A arte é libertadora, o teatro é isso. Ele é alma, sentimento, emoção. Não é que o universo acadêmico não nos diga isso. Mas essa ideia de querer apresentar a arte de forma mais complexa, dificulta muito a aproximação do popular. Apesar do universo acadêmico beber do popular, ele decodifica, sintetiza e muitas vezes repassa de maneira muito complexa. Eu optei por comédias, sátiras, e aquilo me bastava. Meu universo dentro desses 40 anos foi no bom humor, na boa comédia. Quando digo boa, é aquela comédia que tem a consciência do seu tempo. Uma comédia que denuncia, anuncia, que critica, satiriza. Uma comédia dentro das realidades. Isso me tornou uma pessoa mais inteligente, atuante, marcante, mais posicionada. Esse é o grande ensinamento que o teatro me passou. É saber viver dentro desse universo e para esse universo da realidade, do que é mais humano. Sempre tem momentos complicados, porque quando você enveredar por essa arte, sabe que vai ser privado de muitas coisas, vai se privar de muitas coisas também. Quando você tem uma consciência mais crítica, você sabe para onde quer ir. Eu sempre quis ser um ator da minha cidade para a minha cidade. Essa coisa do sucesso, da fama, sempre me soou como uma grande bobagem, futilidade. Lógico que todos nós queremos ser conhecidos, queremos ser apreciados e que nosso trabalho seja admirado, como qualquer profissional. Mas é muita luta, principalmente porque na época que eu comecei não existiam recursos públicos direcionados para quem estava começando, o dinheiro era muito mais voltado para os amigos do poder da área cultural. Com a democratização dos recursos através dos editais, as coisas melhoraram.
DIVIRTA-CE - Fale da sua formação, da preferência pela comédia, os altos e baixos da carreira e momentos marcantes. Comente algumas situações inesquecíveis ou inusitadas.
CARRI COSTA - Sempre tem momentos complicados, porque quando você enveredar por essa arte, sabe que vai ser privado de muitas coisas, vai se privar de muitas coisas também. Quando você tem uma consciência mais crítica, você sabe para onde quer ir. Eu sempre quiser ser um ator da minha cidade para a minha cidade. Essa coisa do sucesso, da fama, sempre me soou como uma grande bobagem, futilidade. Lógico que todos nós queremos ser conhecidos queremos ser apreciados e que nosso trabalho seja admirado, como qualquer profissional. Mas é muita luta, principalmente porque na época que eu comecei não existiam recursos públicos direcionados para quem estava começando, o dinheiro era muito mais voltado para os amigos do poder, da área cultural. Com a democratização dos recursos através dos editais, as coisas melhoraram. Tive tantas situações inusitadas nesses anos. Teve situações engraçadas, outras tristes, coisas que a gente nunca espera que aconteça. Como fazer teatro para uma pessoa só, fazer teatro para duas mil pessoas, um cenário que vai em cena, no "Tita e Nic" aconteceu isso, o pano de fundo todo arriou. Animais que entram no meio do palco como gato, cachorro, sapo. Nesses 40 anos eu sempre estive nos palcos, acho que nesse tempo fui o artista cearense que mais esteve em cartaz. Daí você tira a quantidade de coisas que eu já vivi, de se apresentar na boléia de um caminhão, ou alguém que interrompe uma apresentação de um espetáculo de teatro de rua, provocando uma briga com outra pessoa e eu separando. Tudo isso é muito maluco.

DIVIRTA-CE - Você teve um longo processo de desmonte do Teatro da Praia, um dos primeiros locais culturais da Praia de Iracema. Inclusive dirigiu até um documentário sobre isso. A pandemia contribuiu muito para o fechamento, assim como a falta de ajuda ou incentivo dos governos? Você irá abrir o Teatro da Praia em outro local? Como está essa reconstrução e onde será o novo ponto cultural?
CARRI COSTA - Nesses 50 anos eu tive a experiência de fazer dois teatros. Logo no começo da minha carreira, no bairro da Piedade, fazíamos teatro de bairro e fiz o chamado Teatro Galpão. Pedi ao padre, diretor do Colégio Salesiano, para ocuparmos uma serraria que estava desativada, fazer encenações, e ele topou. Foi a primeira vez que montei um teatro. Foi uma experiência muito legal, fiquei fazendo teatro oito anos para os moradores do bairro e fazíamos um movimento cultural gigantesco. O tempo passou e veio o Teatro da Praia, que existe há 29 anos. Ano que vem serão três décadas! Nós começamos o Teatro da Praia de uma maneira muito inesperada. Foi uma descida na ladeira, uma olhada para aquele galpão desocupado, o estalo de ligar para o proprietário com o telefone que estava na porta, e surgiu essa possibilidade de fazer um espaço cultural onde fosse a sede da Companhia Cearense de Molecagem, e onde eu iria morar, porque não dava para alugar casa e teatro. Eu morei nós fundos do Teatro da Praia, na base da economia mesmo. Foram 29 anos de uma luta constante. Por conta disso eu me considero o esmoléu do teatro cearense. Fui de porta em porta sempre pedir. As horas que fiquei esperando na porta de secretários de cultura, tanto do estado, quanto do município, somariam boa parte desses anos. Fui a empresários, instituições particulares, e na maioria das vezes nunca ganhamos nada, um apoio. O Sesc foi um grande parceiro do Teatro da Praia por muito tempo e me orgulho muito disso. As secretarias de cultura nunca foram nossos grandes parceiros. Toda vez que corríamos atrás e conseguíamos algo era através de editais, de serviços prestados. Mesmo com essas dificuldades, o Teatro da Praia insiste, ele é responsável por uma parcela muito significativa da cultura teatral do nosso estado. Pode ser até pretensão da minha parte, mas é uma realidade. Quando criamos o Fesfort (Festival de Esquetes de Fortaleza) que serviu para escoar toda a criatividade dos atores cearenses, e aconteceu durante 21 anos. Conseguimos que ali fosse um ambiente de experimento, muitos atores, diretores, produtores, surgiram daquele movimento. Grandes atores de renome nacional passaram pelo Festival, como Gero Camilo, Silvero Pereira, como o Grupo Bagaceira e outros tantos. Todos os anos não houve nenhuma paralisação no Teatro da Praia que não fosse para fazer reparos. Ameaçamos fechar várias vezes e sempre pedimos ajuda e conseguíamos manter aberto. Começamos na Rua Senador Almino 227, quatro anos depois passamos para Rua José Avelino 662, e agora, diante de tudo que aconteceu, começou nosso dilema, quando os proprietários pediram o imóvel, que estava alugado há 27 anos. Começou uma grande luta para não sair do local, para conseguir tentar comprar, e não conseguimos. Em 2021 o telhado do Teatro da Praia desabou e foi a pá de cal e tivemos que sair do espaço. Imediatamente fomos atrás de outro local, na Avenida Monsenhor Tabosa, 117, aluguei um espaço que não é teatro, era uma agência bancária, mas que iremos transformar no Teatro da Praia. Estamos aguardando um recurso que irá sair pelo Governo do Estado, em ato que o governador assinou em setembro do ano passado. Estamos esperando esse recurso para montar o palco, comprar cadeiras, poltronas, montar iluminação, sonoplastia, fazer bilheteria, recepção, construir banheiros, tudo aquilo que um espaço cultural pode ter. Queremos fazer um espaço multi uso com um café na entrada, uma galeria de arte.
DIVIRTA-CE - Uma apresentação especial da peça "Tita e Nic", o maior sucesso de sua Companhia Cearense de Molecagem, acontecerá esta semana no Theatro José de Alencar. Esta sátira é um dos espetáculos teatrais com mais tempo em cartaz no Ceará, com grande sucesso de público. Como você analisa o gosto do cearense para o teatro? Está sempre ligado ao humor? É um prazer fazer a mesma peça durante mais de uma década? Quais as transformações do espetáculo que satiriza o filme Titanic ganhou ao longo do tempo?
CARRI COSTA - Antes do "Tita e Nic", fizemos muitas experimentações, fizemos muitas comédias. Até que veio o espetáculo que é uma sátira ao filme Titanic, mas é muito mais uma sátira ao nosso jeito, com a nossa forma de ser. Eu coloco o cearense em cima do palco e tenho muito orgulho disso. De maneira jocosa mas de um jeito responsável, ético, porque a gente é um palhaço. O "Tita e Nic" comemora esses 24 anos, mais de duas décadas de história, com um público de mais de 1 milhão e 200 mil pessoas. No Theatro José de Alencar iremos fazer a apresentação de número 2020. O Teatro da Praia deve muito ao "Tita e Nic", pois sempre trouxemos um público muito bom e os recursos que entravam ajudava a manter o espaço. A peça conseguiu viajar para mais de 12 estados. Onde quer que a gente vá, as pessoas vão assistir com uma certa curiosidade, e sai de lá muito satisfeito com o que assistem. Comemorar esse período de apresentação é um prazer, porque é um dia espetáculos com mais tempo em cartaz no norte e nordeste do Brasil.
DIVIRTA-CE - O filme cearense "Cabeça de Nêgo", que você participou, ganhou o prêmio de melhor filme brasileiro pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema e você irá fazer a segunda temporada da série "Cine Hollyúdi" na Globo. Fale um pouco da sua carreira no audiovisual. Depois de tantos anos de carreira no teatro, como é ser um "global"? Tem novos projetos na TV ou no cinema além destes?
CARRI COSTA - Quando eu decidi não realizar mais o Fesfort eu ganhei esse presente que foi fazer a série "Cine Hollyúdi". Foi surpreendente, um aprendizado enorme. Eu sempre fiz pontas no audiovisual, em filmes e longas fiz participações. Nos anos 90 fazíamos muitos vídeos em VHS, contando histórias. O Pedro Lima Verde é uma pessoa que me ensinou muito, já falecido mas um grande diretor. A primeira participação num longa metragem minha foi em "O Quinze". Logo na sequência participei de outros como "Onde Anda Você?", de Sérgio Rezende. Gravei para a TV Cidade nos anos 90 um programa que foi um sucesso de audiência, fui um repórter de rua com um personagem, eu fazia matérias na rua, que era o "Armando Rede", que me deu uma bora relação com a câmera e público, os comerciais de TV também me ajudaram muito. Até que veio a gravação do Cine Hollyúdi que foi maravilhoso. Você estar na Globo, uma das maiores emissoras da América Latina, estar no.meio de pessoas que tem uma experiência gigantesca no audiovisual, não teve escola melhor. Foi fantástico gravar a primeira temporada. Quando terminei fiz um teste para o "Cabeça de Nêgo", consegui passar e não sabia que esse filme seria um grande sucesso do diretor Déo Cardoso. Eu tive muito prazer em fazer um diretor corrupto, a primeira vez que fiz algo não ligado ao riso. Logo depois fui chamado para fazer "Bem Vindo a Quixeramobim", um filme dirigido pelo Hálder Gomes também (diretor de Cine Hollyúdi), com Edmilson Filho protagonizando, e deve ser lançado agora no segundo semestre nós cinemas. Também fui chamado para fazer uma série da Netflix, que é " O Cangaceiro do Futuro", gravamos no final do ano passado, também direção do Hálder Gomes, e acho que irá sair no streaming ainda esse ano. Agora estou viajando no final desse mês para gravar a segunda e terceira temporadas do "Cine Hollyúdi", depois de ficar um tempinho parado por conta da pandemia. Vou ficar até dezembro gravando lá nos Estúdios Globo. Também gravei um curta meu, isso não falei para ninguém, uma comédia que se chama "Xibiu", com a turma bacana da Black Jack Filmes, gravamos em tempo recorde. Fizemos um curta mas vamos trabalhar os editais para transformar esse projeto em longa metragem ou série.
DIVIRTA-CE - Para você, o que mudou no Carri Costa e na cultura durante esses 40 anos de carreira? O que te deixou triste e feliz?
CARRI COSTA - O Carri mudou muito, viu?  Acho que estou mais tranquilo, eu era muito ansioso. Eu trabalhei demais, agora quero trabalhar de menos. Foram dezenas de espetáculos, adultos, infantis, foram dezenas de produções, foi 21 anos de um festival, 24 anos de "Tita e Nic", e as outras comédias como "Loucuras de Amor", "As Vizinhas", "Mal Assombro", "Albergue Bróder", "Cacos de Família". São 40 anos de grandes produções, agora quero trabalhar um pouco menos. Eu chego nos meus 56 anos e quero mais tranquilidade. Sobre a Cultura, acho que estamos em outro patamar de produção. Antes a gente trabalhava de forma mais artesanal, as lutas para que tivéssemos mais condições do poder público investindo em produções locais deram frutos mas não foi suficiente. Essa luta não pode parar. As novas gerações tem que aprender a lutar também. Tem que ter coragem, o enfrentamento tem que ser constante. Confesso a você que é estranho ver as pessoas da sua geração que lutaram juntos, algumas assinem o poder e não reconhecem os que batalharam contigo. Vestir a camisa do poder público é uma coisa estranha para mim. Bola pra frente, que venham mais 40 anos!

POR FELIPE PALHANO

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