quarta-feira, 9 de novembro de 2011

LIVROS - FICÇÃO

FÁBULA COMOVENTE DE ANDERSEN DÁ ORIGEM A ROMANCE SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Famosa como uma das mais belas fábulas de Natal já escritas, “A vendedora de fósforos”, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, é o ponto de partida para o romance “Grace”, de Richard Paul Evans (340 páginas, tradução de Jairo Arco e Flexa).

No romance de Evans, a história é lembrada num Natal quando o personagem de Eric Welch, já avô, narra para um de seus netos a história da pequenina de Andersen que, em pleno Natal, no frio, vende fósforos pelas ruas, mas para se aquecer acaba gastando todos de que dispunha, e no dia seguinte é encontrada morta sob a neve. Não há quem não se comova profundamente com a fábula, retrato “dickensiano” da infância desamparada em face da crueldade do mundo. Assim acontece com Eric Welch, mas há mais: ele se lembra de que houve também uma “vendedora de fósforos” em sua vida.

A história de que ele se lembra ocorre em outubro de 1962, tempos da “crise dos mísseis”, quando as hostilidades entre EUA e União Soviética colocaram os norte-americanos e o resto do planeta muito perto de uma guerra nuclear, e um pânico com a iminência do “fim do mundo” se disseminou pela América do Norte. Em Salt Lake, Utah, para onde se mudou com sua família, o adolescente Eric Welch, morando com os pais e o irmão Joel, vive o cotidiano normal de um garoto que vai à escola, tem suas predileções por estas ou aquelas comidas, brinca com o irmão, e, morando em condições difíceis e melancólicas num bairro pobre, acaba criando com o irmão um clubinho tipicamente adolescente nos fundos de sua casa, o “Nosso Clube”. É para lá que ele levará uma garota misteriosa que conheceu remexendo numa lata de lixo à procura da comida. Ela diz chamar-se Grace e confessa que fugiu de casa e não quer voltar para lá. Então, ele toma a decisão de hospedá-la no “Nosso Clube”, escondido dos pais, deixando apenas o irmão Joel saber de seu segredo.

Assim transcorrerá a narrativa, sempre na primeira pessoa, e mergulhando no relacionamento de Eric com Grace, que será marcado pelo mistério da menina, que diz ter fugido de casa depois que sua mãe se casou com outro homem, um padrasto cruel que ela nunca mais quer rever. O mistério não acabará aí, e na verdade, um caso de amor muito delicado nascerá entre os dois adolescentes. À medida que o tempo passa, Eric vai gostando cada vez mais de sua hóspede e sempre a presenteará, além de conseguir para ela comida, remédios e tudo o que ela necessita em sua determinação de não voltar para casa, decidida a permanecer no “Nosso Clube”, na dependência de Eric e de seus pais, que tudo ignoram. Porém, o desaparecimento de Grace se torna público. Notificado pela escola e os professores, o assunto transforma-se em manchetes em Salt Lake. A ameaça de que ela venha a ser descoberta nos fundos de sua casa faz com que Eric padeça grandes apreensões. Até porque ela tem o pressentimento de que, se for descoberta, será o seu fim, já que seu padrasto é um homem cruel e violento e ela sabe o que a espera.

Com suspense e ternura, a narrativa vai se alternando entre as cautelas, sobressaltos e ansiedades de Eric para ocultar Grace, e o amor que os une, desesperado, mas com uma grande força em sua inocência.

Acessível, narrado com simplicidade, indo diretamente ao coração do leitor com uma prosa sem enfeites, que remete à vida de um adolescente no começo dos anos 60 na América, em pleno reinado de Sandra Dee, Joe DiMaggio e o aparecimento de um grupo inglês de rock muito promissor, chamado Os Beatles, o romance de Evans é uma denúncia realista, mas que passa pela poesia e por um intenso humanismo, para atingir todos aqueles que se preocupam com os problemas sombrios sofridos por crianças expostas à crueldade dos pais e à incompreensão da sociedade.

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