quarta-feira, 2 de outubro de 2024

ENTREVISTA: Diretor Ronaldo Agostinho fala sobre a missão do teatro de "reconectar as pessoas" fora da internet

Em entrevista ao DIVIRTA-CE, o produtor do Moio de Artes e da Cia Que História é Essa? comenta sobre os novos projetos após a temporada do espetáculo "Entre Quatro Paredes" e da necessidade de um teatro inclusivo 

Um dos grandes diretores da cena teatral cearense na atualidade, Ronaldo Agostinho é também professor de teatro e coordenador cultural de alguns institutos. Formado, produção Cultural e em Licenciatura em Teatro e especializado em Arte Educação e Marketing Digital. Ronaldo tem dedicado sua carreira a promover as artes cênicas, a cultura popular, e o acesso inclusivo à cultura em comunidades menos favorecidas.
O CEO da Moio de Artes Produções Artísticas conversou com o Jornal O Estado, falou sobre a temporada do espetáculo "Entre Quatro Paredes", que esteve em cartaz em setembro no Teatro da Praia, com a Cia Que História é Essa?, , e como seu trabalho desempenha um papel crucial para associações de artesãos e artistas, facilitando a captação de recursos por meio de leis de incentivo e editais de fomento, como a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc. Sua atuação estende-se também à gestão de projetos sociais e culturais, como a condução de festivais internacionais de teatro e a coordenação de ações formativas em parceria com diversos grupos teatrais do Estado do Ceará. Ronaldo esteve à frente de projetos inovadores, como o Projeto Triálogo, que leva espetáculos e formações de plateia às escolas de todo o Ceará, abordando temas essenciais para a juventude e promovendo a reflexão crítica por meio do teatro. Atualmente, ele coordena pedagogicamente o projeto do Instituto Chico Mota, onde continua a fomentar a cultura e a educação através das artes, impactando diretamente a formação de novas gerações.

DIVIRTA-CE - Como você interpreta a frase “o inferno são os outros” de Sartre na contemporaneidade, e de que maneira isso se reflete na encenação da peça Entre Quatro Paredes, que colocou em cartaz em setembro no Teatro da Praia?

RONALDO AGOSTINHO - A frase "O inferno são os outros" de Sartre expressa o conceito de que nossa percepção de nós mesmos é fortemente influenciada pelo olhar e julgamento dos outros. Para Sartre, essa condição gera angústia, pois estamos sempre sendo definidos pelas expectativas e visões alheias, o que pode aprisionar nossa liberdade e identidade. 
Na contemporaneidade, essa ideia se reflete intensamente nas redes sociais e no mundo digital, onde o desejo de validação é contínuo. O isolamento social provocado pela pandemia expôs essa dinâmica de uma maneira única. Ao sermos obrigados a ficar confinados com poucas pessoas, muitas vezes pouco conhecidas, fomos forçados a encarar o impacto desse olhar alheio de forma mais direta, o que gerou tensões e desafios internos. A encenação da peça pode trazer essa reflexão ao palco ao explorar o confinamento e as relações interpessoais como metáfora para o cenário pandêmico. A expressão "penso, logo existo" pode se transformar em "posto, logo existo" ao criticar a necessidade constante de postar e receber aceitação. A peça pode explorar essa ideia ao mostrar personagens presos em uma situação em que suas ações, pensamentos e identidades são continuamente moldados pela visão que o outro tem deles. Dessa forma, o espetáculo reflete a angústia contemporânea de buscar validação através do olhar alheio, agora potencializada pelas redes sociais e a cultura da imagem.

DIVIRTA-CE - De que forma a estética minimalista escolhida para o cenário e figurinos contribui para a profundidade emocional da narrativa da peça? Que técnicas você utilizou para assegurar que o público não apenas assista, mas vivencie e reflita sobre suas próprias angústias durante a performance?

RONALDO AGOSTINHO - A estética minimalista escolhida para "Entre Quatro Paredes" intensifica a profundidade emocional da narrativa ao criar uma atmosfera de isolamento e introspecção. O cenário quase inexistente, com o triângulo de LED, cortinas brancas e a luz azul, reforça o clima denso e sufocante, permitindo que a atenção se volte inteiramente para as emoções e dilemas existenciais dos personagens. O uso da maquiagem inspirada nas  máscaras do teatro Kabuki não apenas evoca tradições teatrais, mas também distancia os atores do realismo, criando uma camada simbólica que expõe as angústias internas, tornando os personagens mais universais e metafóricos. A escolha de manter tudo em tons de branco, inclusive o cenário, faz com que o vazio visual espelhe o vazio emocional dos personagens, contribuindo para o tema central da peça: o aprisionamento nas próprias angústias e na percepção dos outros. Esse minimalismo, além de modernizar a montagem, remete à escassez de recursos que Sartre enfrentou ao escrever a peça em um contexto pós-guerra, o que é agora atualizado para o cenário pós-pandemia. A relação entre esses dois momentos históricos aprofunda a sensação de confinamento e incerteza que muitos experimentaram recentemente. Para garantir que o público não apenas assista, mas vivencie e reflita sobre suas próprias angústias, a encenação utiliza técnicas do teatro contemporâneo, como a quebra da quarta parede. O uso de perguntas diretas ao público, que seriam originalmente feitas aos personagens, cria um envolvimento pessoal, convidando os espectadores a refletirem sobre suas próprias vidas e medos. Além disso, a recepção da plateia com o personagem do criado em trajes de gala segurando espelhos força o público a se confrontar com a própria imagem, como uma metáfora visual sobre o julgamento e a percepção do outro, algo central ao existencialismo de Sartre. A direção cuidadosa para que os atores façam um "crescimento" emocional gradual ao longo da peça também contribui para essa imersão. Cada cena é construída de forma a manter a tensão, culminando em momentos de confronto que espelham as ansiedades contemporâneas. Isso assegura que o público seja constantemente estimulado a refletir e, mais do que espectadores passivos, torne-se parte da narrativa, questionando suas próprias escolhas e as pressões sociais que enfrentam diariamente.

DIVIRTA-CE - Qual é o papel que você acredita que o teatro deve desempenhar na sociedade atual, especialmente em tempos de crescente alienação e individualismo? Você mencionou a importância do teatro como um instrumento de transformação. Poderia detalhar como essa experiência se manifesta na formação de plateias e na sua prática educativa?

RONALDO AGOSTINHO - Eu acredito que o teatro, especialmente em tempos de crescente alienação e individualismo, tem o papel fundamental de reconectar as pessoas, oferecendo tanto entretenimento quanto uma experiência profunda de reflexão e transformação. O teatro, além de entreter, carrega em si uma força educativa e política, capaz de provocar mudanças ao expor realidades, questionar sistemas e desafiar as perspectivas de quem o assiste. O teatro sempre foi uma forma sagrada de expressão, desde suas origens, uma experiência comunitária e mística. Hoje, diante de uma sociedade fragmentada e cada vez mais voltada para o individualismo, a simples montagem de um espetáculo que envolve diversas pessoas em um trabalho coletivo já é, por si só, uma manifestação poderosa contra essa tendência. A interação entre atores, equipe técnica e público é um exemplo concreto de como o teatro pode combater a alienação ao promover a união em torno de um objetivo comum. Na formação de plateia, é essencial que haja um código de identificação entre quem faz e quem assiste. O público precisa se conectar emocional e simbolicamente com o que está acontecendo no palco. Essa conexão se dá por meio de signos e símbolos que tornam o teatro acessível e significativo. Assim como o futebol, que é popular porque as pessoas se sentem aptas a discutir e se envolver, o teatro também precisa ser compreendido e discutido por todos, criando um diálogo contínuo entre arte e público. Quanto mais as pessoas entenderem de teatro, mais elas poderão apreciar, criticar e se identificar com essa arte. Na minha prática educativa, esse processo de identificação é central. A formação de plateia passa por ensinar não apenas a assistir, mas a refletir e a se ver naquilo que é apresentado. Quando o público se vê no palco, nas angústias, nas dúvidas e nas questões levantadas, ele se torna parte da experiência. Meu trabalho como professor e estudioso do teatro busca justamente isso: incentivar essa compreensão e empatia, para que o teatro continue a ser um espaço de transformação pessoal e social.

DIVIRTA-CE - Como sua experiência na Moio de Artes Produções Artísticas influenciou suas decisões na produção deste espetáculo? O que te levou a esta montagem que fez sucesso em diversos palcos do Brasil, inclusive em Fortaleza? Como foram os ensaios e o processo de montagem do espetáculo? É difícil adaptar um texto de Jean Paul Sartre no teatro atualmente?

RONALDO AGOSTINHO - Minha experiência na Moio de Artes Produções Artísticas influenciou profundamente minhas decisões na produção deste espetáculo. A Moio de Artes tem um compromisso com a inovação e a acessibilidade no teatro, e isso me levou a buscar uma abordagem que dialogasse com as questões contemporâneas, especialmente em um momento tão desafiador para as artes cênicas. A escolha de montar "Entre Quatro Paredes" foi impulsionada pela relevância do texto de Sartre, que aborda temas existenciais que ressoam intensamente na sociedade atual. Fazer teatro hoje é extremamente difícil por várias razões, principalmente políticas e financeiras. O desmantelamento das políticas de fomento ao setor cultural tornou a captação de recursos um desafio, limitando as possibilidades de produções mais ambiciosas. A nossa temporada foi curta, com apenas três sextas-feiras, o que é um reflexo dessa realidade. Os ensaios foram um processo intenso e enriquecedor. Dedicamos muito tempo à leitura e interpretação do texto, que é denso e carregado de significados. A conexão emocional dos atores com as palavras era fundamental, e incentivamos uma leitura minuciosa para que cada palavra tivesse um peso e um sentido claros no corpo de cada um deles. Essa prática de leitura incessante permitiu que encontrássemos nuances que ajudaram a dar vida à peça. Além disso, a montagem de um texto clássico, que não possui uma linguagem contemporânea direta, apresenta desafios. No entanto, isso também abre espaço para que exploremos novas interpretações e formas de conexão com o público. Embora o existencialismo de Sartre seja uma linguagem clássica, sua relevância permanece atual, refletindo as condições e angústias da vida moderna. A adaptação de um texto como este exige um profundo conhecimento não apenas do texto, mas também das emoções e vivências que ele provoca. As dificuldades se transformaram em oportunidades de experimentação e criatividade, permitindo que a equipe se envolvesse de forma coletiva, o que é essencial para qualquer produção teatral. Essa experiência reforçou a importância do trabalho em equipe e da troca de ideias na busca por uma encenação que não apenas respeitasse a obra de Sartre, mas que também ressoasse com as experiências contemporâneas da plateia.

DIVIRTA-CE - Quais os próximos projetos e peças da Moio? Quais parcerias têm sido mais significativas para a Companhia Que História É Essa? e como elas impactam a qualidade e a abrangência do seu trabalho? Que legado você espera deixar com seu trabalho na cena teatral cearense, especialmente em relação ao acesso à cultura e às artes?

RONALDO AGOSTINHO - Essa pergunta realmente toca em aspectos cruciais da nossa atuação na Moio de Artes Produções Artísticas. Temos diversos projetos e peças em andamento, incluindo um novo grande clássico da literatura dramática mundial que em breve começaremos a divulgar. Essa nova montagem é uma oportunidade emocionante de explorar obras que continuam a dialogar com questões contemporâneas.Nossas parcerias são fundamentais para o sucesso e a evolução da companhia. A colaboração com o Teatro da Praia, por exemplo, tem sido essencial, pois nos permite criar um espaço de diálogo e intercâmbio com outras linguagens artísticas. Além disso, a parceria com a Upgrade, que atua na comunicação e na promoção cultural, é crucial para ampliar nossa visibilidade e alcançar novos públicos. Essas colaborações não apenas enriquecem a qualidade das nossas produções, mas também aumentam a abrangência do nosso trabalho, permitindo que cheguemos a diferentes segmentos da sociedade e a novas audiências. Quanto ao legado que espero deixar na cena teatral cearense, acredito que a inclusão e o acesso à cultura e às artes devem ser prioridades. O teatro deve ser um espaço acessível a todos, e meu objetivo é promover essa ideia por meio de iniciativas que garantam a participação de públicos diversos. Isso inclui não apenas a realização de espetáculos em locais alternativos e comunitários, mas também a promoção de atividades formativas que desenvolvam o interesse pelo teatro nas novas gerações. Acredito que, ao criar um ambiente onde todos possam se sentir representados e ouvidos, estamos contribuindo para uma cena teatral mais rica e plural. Esse legado envolve não apenas o ato de apresentar peças, mas também o compromisso em formar plateias críticas e engajadas, que reconheçam o valor do teatro como um instrumento de transformação social. É um trabalho contínuo, mas acredito que as sementes que estamos plantando hoje darão frutos no futuro, tornando a cultura uma parte acessível e essencial da vida de todos.

DIVIRTA-CE - Como você enxerga o futuro do teatro no Ceará e quais são seus planos para a Cia Que História É Essa? nos próximos anos?

RONALDO AGOSTINHO - Eu sou um ser político e otimista, e enxergo o futuro do teatro no Ceará da melhor forma possível. Visualizo um cenário repleto de grupos, muitas peças, um público engajado e espaços diversos para apresentações. Teatro, auditórios, escolas, praças, teatros privados e públicos são todos lugares onde o teatro pode florescer. Essa é a maneira como desejo e vejo o futuro do nosso estado. Não apenas vejo esse desejo, mas também me esforço para criar um caminho político que ajude a construir esse espaço. A Rede Pavio, uma rede de teatros de grupos do Nordeste, é um exemplo de como estamos nos juntando e conversando sobre nossos processos criativos e de pesquisa. Esse fortalecimento da entidade é fundamental para o crescimento do nosso teatro. Além disso, espero que acompanhem o "Teatro Que História É Essa". Este ano, ainda temos mais três projetos programados, incluindo "A Festa dos Caboclos", Esses projetos são uma forma de enriquecer nosso cenário teatral e de trazer novas narrativas à tona. Com essa visão e determinação, acredito que podemos transformar a cena teatral do Ceará em um espaço vibrante, inclusivo e acessível para todos.

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